domingo, 4 de julho de 2010

Quincas Berro d'Água

Direção: Sérgio Machado


Ver uma adaptação de um livro para o cinema é algo que eu achava que não tinha mistério. Hoje, vejo que é algo que ainda estou a aprender. Na verdade, começo a entender que ver o cinema não é algo tão óbvio como à primeira vista pode parecer ser. É preciso entender que o filme é uma linguagem e, sendo assim, devemos saber ler seus signos: câmaras, figurino, luz, angulações, interpretações. 

Ao entender que o cinema é uma linguagem própria, que não se confunde com a literatura ou as artes plásticas, é possível entender uma adaptação de uma obra literária para o cinema sem cair nas óbvias comparações: "tirou isso", "inventou aquilo". Sim, até pouco tempo atrás, ao ir ao cinema ver uma adaptação, eu esperava ver nas telas o mundo criado pela minha mente ao ler o livro. Não entendia que ao passar de uma linguagem para outra abre-se ao diretor e ao roteirista uma possibilidade inventiva. Adaptar não significa traduzir.

Sem mais delongas, passo ao filme...   


Antes de mais nada, o filme é uma adaptação da obra do escritor baiano Jorge Amado, qual seja o livro "a morte e a morte de quincas berro dágua", escrito em 1961 como uma crítica à sociedade burguesa da época. Apesar da data é incrível constatar que a obra é incrivelmente atual, em todos os sentidos. Vale ressaltar que a repetição do nome no título não se dá por acaso: representa as duas mortes de quincas, tão controversa na cidade de Salvador. Arrisco em dizer que a omissão deste detalhe no título do filme tem a ver com uma própria adaptação da história, já que para mim o Quincas do livro era um pouco mais vivo do que o do filme, se é que isso existe.

O personagem teve duas personalidades em vida: nasceu Joaquim Soares da Cunha e morreu Quincas Berro Dágua. O primeiro era um pai de família responsável, funcionário público por toda a vida (ou quase). O segundo era o primeiro que, ao ser aposentado de seu cargo de funcionário público, e não mais suportando o ambiente em que vivia, principalmente sua mulher (jararaca), foi-se embora com a roupa do corpo rumo às ruas da Bahia, tornando-se então o rei dos vagabundos, o maior cachaceiro que aquelas terras baianas já conheceram. E assim morreu, no exato dia em que iria completar 72 anos.

Já de início se percebe as incursões de Sérgio Machado no romance: o quincas de Jorge Amado já nos aparece morto. No filme, flagramos ele em seus últimos momentos: enquanto todos preparam sua festa, ele se arrasta até o apartamento em que vive e lá morre, solitário, em sua cama imunda. De longe não era uma morte digna do ícone da vagabundagem baiana. A família que um dia conviveu com José Soares da Cunha, diante daquela notícia desagradável, se viu obrigada a dar conta do morto, com extrema discrição, claro, afinal muitas foram as histórias inventadas para as pessoas do seu convício social em virtude do seu sumiço. Dentre tantas, obviamente não estaria a de ter virado cachaceiro. Optando por um discreto velório, no próprio quarto do morto, a família se vê obrigada a dividir o pequeno espaço com os novos amigos de Quincas, ou melhor, de José Soares da Cunha.

Ocorre que o velório teve seu fim antes do esperado. Tendo a família se descuidado no cuidado do morto, os amigos, que não haviam se convencido da morte do amigo e certos que estava Quincas a lhes pregar uma peça, o levam embora carregado e a bons goles de cachaça. Quando a família se dá conta do ocorrido procura a polícia e daí se inicia uma cômica perseguição pelas ruas do pelourinho. 

Analisando o filme como um todo, creio que Sérgio Machado captou bem o espírito de Jorge Amado. Suas incursões na história fazem com que transpareça a alma do escritor. Não há no livro qualquer vestígio a cerca da incansável busca da família para resgatar o corpo, nem tampouco do candomblé. A família aparece até abandonar o corpo no quartinho imundo em que se passava o velório e tchau. Mas a partir de tais incursões podemos observar pontos fundamentais das obras de Jorge Amado, como a hierarquia que perpassa as relações sociais (delegado e parentes do morto), sensualidade e desejo reprimidos em virtude das convenções sociais (Vanda - Mariana Ximenes e Leonardo - Vladmir Brichta), a grande admiração pelas putas (Manuela - Marieta Severo).

As intervenções foram muitas, mas todas para traduzir não só a história a que se propusera a contar, mas para traduzir todo um espírito por detrás do criador originário. Assim, fugindo do meu comportamento habitual de comparação livro-filme e caminhando no meu aprendizado, creio que a adaptação foi boa e vale a pena ser vista! Se a leitura do livro anteceder ou proceder a leitura do filme... melhor ainda!

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Van Gogh

Diretor: Maurice Pialat
Duração: 158 min
Ano: 1991

Acabo de desligar a tv após quase duas horas de filme. E depois, claro, de ver todos os créditos e de ouvir as músicas que os acompanham (mania, quase um tique!).  Confesso que as duas horas não voaram e que até arrisquei alguns olhares furtivos para o relógio. O ritmo do filme é lento e se você não conhece muito da vida do artista é provável que não veja aonde o filme quer chegar, nem aonde chegou.

Bom que se diga que o filme não tem o objetivo de ser didático, nem tampouco de trazer aos espectadores a biografia do artista. Antes disso, o diretor quis trazer uma abordagem diferente sobre uma época em específico do pintor, fugindo assim do caminho traçado pelas demais obras que o retratam. Para quem já viu as demais, perfeito, acho que só acrescenta. Para quem não as viu (meu caso), o jeito é fazer o caminho inverso e correr atrás delas. Um dos filmes que estou louca pra ver é "Sede de Viver", de 1956. Não deve ser lá tão fácil de baixar, mas papai cinéfilo vai receber a incumbência de procurá-lo.

A obra retrata os dois últimos meses da vida do pintor, quando se muda para Auvers-sur-Oise, vilarejo perto de Paris, durante o qual fica sob os cuidados do Dr. Gachet. O médico é um amante da pintura, motivo pelo qual possui um certo remorso com o destino por não ter lhe dado um talento inerente. De qualquer forma, esse fator une médico e paciente, estreitando-se relações. O filme, ao mesmo tempo que mostra a genialidade do artista, mostra também um Van Gogh problemático, com dificuldades para se relacionar, extremamente crítico e com um humor voraz. Mostra também seu lado boêmio e por que não dizer extravagante, retratado pelas suas idas a Paris, pelas visitas aos bordéis, pelas danças. Outro foco do filme é a relação do artista com seu irmão, Theo, que o sustentava. Por sinal existe um livro que reúne as cartas trocadas pelos dois neste período: "Cartas a Theo". Ainda não o li, mas já entrou para a lista de 2010.

Aqui cabe deixar registrado o anacronismo observado no dia a dia do pintor, que em alguns momentos não tinha sequer o que comer, enquanto que hoje seus quadros são verdadeiras relíquias, cujos preços vêm acompanhado de váários zeros.

Um ponto alto do filme é a fotografia e, por sinal, li em algum lugar que elas teriam tido influências das obras de Renoir e Monet.

Os cortes do filme é que me deixaram com um pé atrás e me deixaram com um crédito para colocar na lista dos "pontos baixos". De fato, a transição entre as cenas às vezes faz com que nos percamos, e algumas coisas ficam sem explicações aparentes (claro, para aqueles que não conhecem a fundo a biografia de Van Gogh). Até mesmo no final, quando comete suicídio, confesso que a princípio não caiu a fixa que ele próprio tinha se dado um tiro. Claro, era informação óbvia, afinal de contas ele é um ícone artístico e não um personagem para o qual se pode criar o final que se deseja. Pelo fato de Pialat ter querido retratar por um ângulo nunca retratado, até mesmo nestes pontos cruciais ele foge do óbvio.

No mais, o filme é bom e vale a penas ser visto, mas vale o aconselho de dar ao menos uma breve pesquisa sobre o ícone antes. O ideal mesmo é assistir aos outros filmes antes, que retratam sua vida de forma mais completa, para daí sim conhecer uma fase mais específica. Mas é isso, já que não fiz desta forma, meu plano agora é ver os demais e depois rever este.

Antes de dar o ponto final a este post, cabe ainda fazer um comentário sobre esta primeira foto que coloquei abaixo. Nela está o pintor com a filha do Dr. Gachet. Se não a mencionei antes é porque creio que ela é um dos instrumentos utilizados pelo diretor para explicitar a personalidade conturbada de Van Gogh. Ela, entretanto, possui brilho próprio. Feminista, corajosa, autêntica e forte. Gostei dela desde a primeira cena em que apareceu. O jeito como fala, como se impõe. Um misto de mimo e de rebeldia motivada pelo conservadorismo e puritanismo da época. O pai, muito embora fosse um liberal, não o era quando se tratava da própria filha. Comum até mesmo nos nossos dias. 

Ponto Final.




  

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Little Ashes

Diretor: Paul Morrison
Duração: 107 min.

Mais um que tem a Espanha como cenário principal, assim como as efervescências políticas e culturais do período pós Primeira Guerra Mundial e vésperas da Guerra Civil Espanhola. Sua origem, entretanto, não é espanhola, e sim inglesa. A língua é um inglês carregado de sotaque, que deixa muito a desejar para a sonoridade do espanhol, diga-se de passagem...

O filme se passa em meados da década de 20, no início do século passado e retrata a revolução cultural pela qual passava a Espanha no período posterior à primeira grande guerra. Além de inspirada nas obras de Freud, que trouxe à tona um aspecto novo da realidade humana, na medida em que revelou os atos humanos como impulsos automáticos e  nem sempre provenientes de um encadeamento lógico, tinha forte fundamento na decepção generalizada com o fracasso das ciências, filosofia e religião, que se mostraram incapazes de evitar a onda de destruição que disseminou a primeira grande guerra. 

Um ponto interessante do filme é mostrar o encontro de três geniais artistas, o pintor Salvador Dalí, o poeta Garcia Lorca e e o cineasta Luis Buñuel em uma fase pouco conhecida. Tendo completado 18 anos, Salvador Dalí entra na faculdade determinado a se tornar um grande artista. É um misto de timidez e autoconfiança. Exala excentricidade de forma proposital, pois acreditava que era o papel dos artistas ser à frente de toda uma geração, inovar, não ter limites.

Confesso que me surpreendeu a atuação de Robert Pattinson, de forma que em alguns momentos até esqueci que se tratava do mesmo vampiro de Crepúsculo. Achei ele perfeito com a sexualidade pouca definida e com aquela personalidade transtornada e exagerada. Ainda assim, quem rouba a cena é o ator Javier Beltran, que interpreta Garcia Lorca. Ele consegue ser intenso como o personagem que representa e acaba conquistando a simpatia de todos pela sua coragem.

Engraçado que a princípio Garcia Lorca se mostrava mais fechado e introspectivo, pode-se dizer que até um pouco conservador. Já Salvador Dalí que pregava a ausência de limites, mostrou-se  muito pouco revolucionário em sua própria vida privada, para não dizer reacionário. A imagem que me passou foi de uma pessoa muito conturbada, principalmente sexualmente, como se guardasse consigo algum trauma não resolvido.

De fato só foi assumir a relação tida com Garcia Lorca já no fim da sua vida, muito embora ao meu ver tenha sido a grande paixão da sua vida. Aquele curto período de tempo em que se entregaram um para o outro, senão de corpo e alma, mas somente de alma, foi belo, inocente e acima de tudo verdadeiro.

O filme mostra os artistas como verdadeiros propulsores do movimento político, crentes em uma Espanha de liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de vida. Eles se reúnem, movimentam as massas, acreditam. A realidade, porém, é deveras cruel. O avanço militar toma espaço na Espanha, e os falangistas caminham rumo ao poder,  disseminando-se o terror, a repressão, o medo.

A questão da homossexualidade ganha muito espaço no filme, mostrando de um lado uma sociedade ainda muito preconceituosa, com resquícios religiosos muito fortes, fato que não é de se estranhar em se tratando da Espanha. O próprio Luis Buñuel condenava avidamente os homossexuais e, muito embora eu não saiba nada de concreto sobre sua opção sexual, o que passa na tela é um homossexual que não aceita a si mesmo.

Apesar dos personagens principais serem homens, tem uma mulher em especial que me chamou a atenção por sua personalidade forte e revolucionária. Trata-se de Margarita, a primeira namorada de Lorca, que retrata a realidade das mulheres no início do século passado, principalmente daquelas que usavam a massa encefálica para algo mais que cuidar dos filhos e maridos. Margarita é revolucionária em essência, ela estuda, escreve, luta. Mais uma questão discutida no filme que não pode passar em branco.

O desfecho é triste, para quem conhece a história de Garcia Lorca sabe do que estou falando. Acabei apaixonada por ele, procurando nas prateleiras algum livro de sua autoria. Pena não ter achado, mas achei muitas poesias na internet.

No mais, não posso deixar de dizer que o filme só pecou pela língua. Tenho certeza que se fosse espanhol a emoção seria outra. Ouvir as declamações das poesias em inglês não tem praticamente sabor algum.




quinta-feira, 17 de junho de 2010

A Língua das Mariposas


Direção: José Luis Cuerda
Duração: 96 min.
Ano: 1999

Já falei no primeiro post a respeito da minha predileção com relação aos filmes espanhóis e sobre o meu atual vício no que diz respeito à Guerra Civil Espanhola (por sinal acabei de adquirir um romance sobre o tema: "O Retorno", de Victoria Hislop). Como dito, mais um filme que retrata este período, sob uma perspectiva bastante diferente do anterior.

O filme não é novo, é de 1999, e foi o meu primeiro filme do diretor José Luis Cuerda. Confesso que me apaixonei pela linguagem, pelo enfoque e inclusive pelas músicas, cuja trila sonora foi assinada por Alejandro Amenábar. 

A Língua das Mariposas se passa no período anterior à ascensão de Franco, quando os republicanos ainda estavam no poder. Apesar deste fundo histórico, entretanto, a maior parte do filme se concentra na relação entre o garoto Moncho e o seu professor Don Gregório.

Moncho é um garoto de 7 anos que os pais decidem que ele deve começar a estudar. O garoto, alimentado pelo que já ouvira a respeito dos professores, fica apavorado com a idéia, certo dos métodos violentos dispensados aos alunos. Como escapatória, tem a idéia de fugir para a América, já que não precisava de escola, já sabia ler!

Seu primeiro dia de aula não ajuda a melhorar sua imagem sobre a escola, já que, apavorado, é alvo de piadas dos demais alunos, e acaba por fazer xixi nas calças, quando então resolve fugir da classe e da Espanha, rumo à América. Sua fuga não vai adiante, claro, já que não se trata aqui de um filme de aventura ou ficção. Acaba sendo encontrado pela família no bosque tarde da noite. O professor, entretanto, não desiste do aluno, vai até a casa de sua família pedir desculpas pessoalmente e tentar convencê-lo a retornar às aulas, garantindo que nunca em sua vida acadêmica teria batido em um aluno.

Moncho confia em Don Gregório, e não tinha como ser diferente. O professor, interpretado por Fernando Fernán-Gomez, é pessoa plácida, calma e um democrático em essência. Cria-se daí uma relação peculiar entre professor e aluno, sendo mágico ao espectador observar o êxtase com que Moncho incorpora cada conhecimento passado por seu professor, bem como a paixão com a qual esse conhecimento é passado pelo mesmo. Será este o segredo do ensino? Terá a paixão de quem ensina o poder de motivação de quem aprende?

O contexto político sobreleva-se no dia a dia daquela pacata cidade, por mais que aos olhos do garoto nada daquilo fizesse muito sentido ou sequer tivesse importância. O pai de Moncho é Republicano e ateu. Sua mãe é católica, mística e mostra-se sempre confusa com as idéias do marido. Don Gregório também é republicano e ateu, mas ao contrário do pai de Moncho, ele exterioriza suas ideologias e faz delas seu norte de vida. Liberdade, inclusive dentro de classe.

O filme tem seu desfecho com a eclosão da Guerra Civil, trazendo consigo tudo de pior na essência do homem: medo, egoísmo, covardia. Tudo é destroçado, senão fisicamente, mas socialmente. Mostra-se então o poder destrutivo da guerra, capaz de transformar o belo em terror. É pavoroso observar como o medo amordaça e destrói a personalidade. A cena final é triste, lacerante. Mas para mim Moncho nunca acreditou naquelas palavras que fora forçado a dizer. Li em seus olhos a tristeza de ver seu amado professor condenado e a promessa, através do brado daquelas palavras por ele ensinadas, de que tudo que fora ensinado, nunca seria esquecido.

Para mim um diálogo em especial marcou. Ao presentear Moncho com um livro, Don Gregório diz: "Nos livros nossos sonhos se refugiam para não morrer de frio". E não é verdade? 

E com relação às cenas, além da final, que obviamente é tão triste quanto marcante, outra que me chamou a atenção pela beleza foi a que o irmão de Moncho, que toca saxofone em um banda, finalmente consegue tocar plenamente, com paixão, quando descobre a verdadeira paixão pela garota chinesa. Lindo.

terça-feira, 15 de junho de 2010

A Mulher do Anarquista

Diretores: Marie Noelle e Peter Sehr
Duração: 112 min.

Antes de mais nada, devo dizer que inicio este blog a viver uma espécie de vício a cerca de tudo que retrate a Guerra Civil Espanhola. Depois deste post devo fazer pelo menos mais dois de filmes que recentemente assisti e que, de ângulos diversos, retratam esta guerra peculiar pelo seu tempero espanhol. Além disto, devo ressaltar que tenho uma queda enorme pelos filmes espanhóis, a língua me inebria. 

O cenário é a Guerra Civil Espanhola, mas nem por isso é "mais um" dentre os outros do gênero. O grande segredo de contar uma história já contada, é contar por uma perspectiva diferente.

O pano de fundo é a guerra, mas sob os nossos olhos vemos o desenrolar da vida de uma família. Pai, mãe, filha. Justo Calderón, Manuela e Paloma. Justo é anarquista, de luta e de coração. Sua vida é eternamente dividida entre dois amores: a família e a política. Manuela é uma jovem sem aspirações políticas, que vive rodeada de pequenos luxos e vive para sua filha e para o eterno retorno do marido. Paloma é a pequena menina, que vai crescendo durante o filme, de caráter e personalidade fortes, que logo percebemos terem sido herdados do pai.

Não é de estranhar que, muito embora o título nos remeta a Manuela, quem narra a história é Paloma, a qual teve sua infância marcada pela guerra, pelo cair das bombas, pela voz distante do pai na rádio e por uma Espanha devastada. 

O filme se inicia no período anterior à ascensão de Franco, na fase conturbada de luta entre esquerda e direita para se manter no poder político da Espanha. Justo Calderón luta pela liberação da Espanha e pela república, sempre confiando na vitória que acreditava não tardar. O início do filme é marcado pelas idas e vindas dele até sua casa, onde vive uma grande paixão com a esposa, Manuela. A diferença ideológica entre os dois é evidente, mas é lindo observar como ambos se entendem, mesmo nas diferenças. A cena que mais retrata isto creio que seja a que ela, na falta de carvão, usa os livros de Direito de Justo para acender a lareira. Ele não acredita quando vê seu livro queimando na lareira e quase tem um acesso de raiva: "Só os fascistas queimam livros!" Mas não resiste à humanidade simples da mulher, que justifica seus atos no frio que sentia. "Você com suas ideologias, parece que está a perder o senso de humor!"

O filme vai se desenrolando com o transcorrer da História: vitória dos falangistas, início da ditadura de Franco, segunda guerra mundial, período entre guerras. O teor histórico do filme é marcante e retrata de maneira forte a Espanha em plena guerra civil: as perseguições, os conflitos ideológicos. Não obstante a História, também ganha destaque o sofrimento de Manuela, toda sua humanidade exposta, e o esforço de uma criança para compreender todo o universo em que vive, além da formação de sua própria personalidade. Paloma assim vai crescendo, ajudando sua mãe, sempre sob o culto daquele pai distante, que se foi e que tanto faz sua mãe sofrer.

O filme também mostra com exatidão a diversidade ideológica que formava a Frente Popular: anarquistas, comunistas, socialistas e liberais de esquerda. Não é novidade que este fato foi decisivo para o fracasso do movimento, na medida em que não havia consenso dentro do próprio grupo. A cena que retrata a desapropriação da casa do irmão de Justo é forte e traz às claras este heterogeneidade existente,  ao ser a sua mulher assassinada por um membro de uma das facções do movimento, sem ter ela qualquer envolvimento político.  

É interessante de ver também a maleabilidade de Manuela. Inicia como dona de casa, rodeada de mimos e frivolidades, termina como uma mulher mais madura, não obstante sempre romântica e sonhadora, mas que compreende a luta de Justo, acima de tudo. Não que viesse a ter qualquer aspiração política, mas o buscar entender. Por isso que digo que acima de tudo é uma história de amor, belíssima em tempos temerosos. Paloma que o diga.